domingo, 24 de fevereiro de 2008

As Bicicletas de Belleville

Aprendendo ilusão: veja porque As Bicicletas de Belleville merece muito ser visto

Filme é uma aula de ilusão. A cartilha é o exagero.

Claudio Szynkier

Há pelo menos um bom motivo para que As Bicicletas de Belleville (França, Canadá, Bélgica, 2003) seja visto com atenção: é uma obra da ilusão discursando sobre a ilusão. A animação, dirigida por Sylvain Chomet, é feita quase sem falas e estreou há alguns dias. Está ainda em cartaz, pelo menos na cidade de São Paulo, em várias salas. Basicamente, a história de uma avó, um neto e bicicletas. Começamos na França, onde moram avó e seu neto, e vamos a um lugar chamado Belleville.
Primeiro, compreendamos o caráter dessa obra. Nessa animação, os traços são constituídos por uma engenharia que transporta o espectador para outro contexto histórico. É como se o desenho tivesse sido descoberto como relíquia visual, embalsamada, dentro de uma caixa engavetada há tempos, cinco décadas atrás. Essa engenharia de traços define ainda outra propriedade básica de As Bicicletas de Belleville: existe de fato um mundo funcionando dentro desse desenho. Nele, palpa-se o real, através de referências - cacoetes culturais, geográficos e urbanos salientes. No entanto, estamos em um lugar que não conhecemos, como se o tal mundo fosse dimensão paralela - terreno reconhecível, mas bizarro. Fortemente, o alegórico injeta seus contornos na realidade, e vice-versa.

O exagero é a tonalidade de As Bicicletas de Belleville. Este exagero abastece design e formas arquitetônicas que se agigantam. O exagero também ceva graficamente fisionomias, encharca de ternura ou de crueza atos humanos. Entendamos. Temos a avó Souza, portuguesa, que, etnicamente inconfundível, dedica-se ao resgate de seu neto, Champion, raptado e aprisionado em um cargueiro. O transporte é grotescamente descrito como objeto próximo a uma ferramenta ou a um utensílio doméstico. Mas, mesmo assim, trata-se de um cargueiro, que ainda cativa. A senhora persegue o navio até outro continente a bordo de um pedalinho. Visível, uma possibilidade dramática tremendamente exagerada, e também cativante.

Champion é ciclista, corredor seqüestrado em plena Volta da França, prova nacionalmente tradicional. A vida do neto da senhora Souza é centrada em um único movimento, o de pedalar. Pedala auxiliado por tronco fino e pernas de diâmetro avantajado e monstruosamente cartoon. Ele come, dorme e prepara-se fisiologicamente com o objetivo único de, no dia seguinte, estar condicionado a andar de bicicleta. É um amor de expressão e nuances mecânicas que parece estar agregado como instinto. Neste ponto, o exagero, mais uma vez, modela a lógica.

No outro continente, em busca do neto, a senhora Souza depara-se com a enorme cidade de Belleville, citação clara ao coração norte-americano, Nova Iorque. Lá, ela encontrará um povo hiperbolicamente gordo. Conhecerá gangsteres tão caricaturalmente sombrios quanto adeptos da vilania. Vê-se, aqui, uma cidade concebida via estruturas anabolizadas. Souza encontrará também três irmãs, trigêmeas dançarinas. Quem são elas? Personagens, agora bem envelhecidas, que Souza, de olhos vidrados, acompanhava hipnotizada, através das cálidas luzes de um televisor em preto e branco, anos antes, ao lado do neto.

E é sobre isso que fala a ilusão de As Bicicletas Belleville: encanto. Ou, antes, entrega ao encantamento, ao hipnótico. Nesse mesmo cordão de questões, a vocação para sermos manipulados - incluindo aí o consentimento para quem orquestra a manipulação - e a capacidade de adesão plena às cores que as máquinas de ilusão propõem. Ironicamente, são exatamente essas experiências que o próprio filme oferece em seu jogo lúdico, e cínico, de imagens. As Bicicletas de Belleville é ilusão discursando sobre a ilusão que o compõe. O filme fecha, também diante da TV, reforçando esta leitura.

No mesmo eixo, o segundo fator fundamental no trabalho de Chomet. No filme, conhecemos um menino, Champion, carente dos pais, porém criado com zelo e carinho irrestritos pela avó. Antes das espinhas, o garoto ganhou um cachorro, Bruno, e um triciclo. Ele também descobriu cedo, dentro de casa, um ambiente de devoção intensa ao ciclismo. Anos passam, até esse menino tornar-se um grande ciclista. Foi treinado, em sessões de metodologia e disciplina quase religiosas, pela avó. No princípio de As Bicicletas de Belleville, uma das primeiras cenas aponta a avó e o neto paralisados, em transe, diante de uma performance - na TV, mais uma vez. Na tela, um pianista. Todos assistimos a um prelúdio de Bach sendo executado com suor, respeito à dificuldade e consciência em relação ao sublime.

Quer dizer, As Bicicletas de Belleville também se mostra como um ato amoroso de reverência à técnica. Uma reverência, provavelmente, ao primor técnico contaminando e sendo contaminado pela inspiração artística. Ao ponto, talvez, de não haver limites ou disparidades entre as duas coisas. A idéia que solidifica tal conclusão: nessa obra há algo de poético, e também de sublime, na visualização da vida, altamente calculada, em duas rodas.

Na verdade, o filme sorve seus próprios comentários - técnica e ilusão combinam-se. As Bicicletas de Belleville produz ilusão por meio de inúmeros agentes: o apelo embutido em suas imagens, a sofisticação artesanal, mas, ainda assim, rebuscada, empregada em sua realização, o cuidado ortodoxo na reconstituição de todo um imaginário antigo relacionado ao desenho animado. Isto é, a ilusão é gerada no aplicado exercício da linguagem. Em suma, por meio do esmero técnico. Daí serem estes, ilusão e técnica, os principais temas.

O filme é criativamente elegante, tem forte identidade mágica e parece, sobretudo, versar sobre um mundo, ou tempo, de ilusão e técnica puras. Antiquadas, empoeiradas e, hoje, talvez, raras.

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