domingo, 6 de junho de 2010

Cinema

Fassbinder: "Tenho mais energia que qualquer bomba"
A morte prematura de Fassbinder, há 20 anos, foi uma sensação para a mídia, conferindo uma nova dimensão à lenda que já se havia desenvolvido em torno de sua personalidade. Muitos achavam que ele próprio tinha se matado, o que conferia com a realidade apenas na medida em que sua vida toda foi auto-destrutiva. Ele sempre trabalhou demais, comeu demais, bebeu demais, fumou demais, ingeriu drogas, soníferos e estimulantes demais, e viveu, portanto, constantemente, contra a própria saúde. Mas o fez na esperança irracional de poder agüentar tudo.

Como Fassbinder estava convencido de nunca ter tido infância, como adulto havia se tornado um jogador contumaz, mas os jogos de que mais gostava continham um elevado grau de risco. Fazer filmes era um destes jogos que o levavam a situações difíceis, mas que conseguia superar graças ao seu poder de improvisação e o de tomar decisões rápidas. Tudo tinha que ser feito depressa. Esperar até ter dinheiro suficiente para o próximo projeto, por exemplo, estava totalmente fora de cogitação para Fassbinder.

Filmar era uma nova droga. O que havia de estimulante no trabalho cinematográfico era para ele mais importante do que o produto acabado. O que assim surgia eram "filmes descartáveis", como ele dizia, ou seja, filmes que são feitos em determinado momento sobre determinado tema. "Depois, por mim, podem ser esquecidos." Quando um produtor alemão lhe ofereceu um contrato de cinco anos que lhe teria dado mais de 50 mil marcos por mês, sob a condição de não rodar mais de um filme por ano, ele não mostrou interesse. "O que é que eu vou fazer durante o resto do ano?"

A vantagem do seu ritmo alucinado de trabalho era que ninguém tinha oportunidade de ficar entediado e que todos, sobretudo os atores, estavam permanentemente sob tensão. As desvantagens: em todas as fases da filmagem, desde a elaboração do roteiro até a dublagem, o trabalho era bastante esculachado. Enquanto autor, ele não estava disposto a assumir esforços desnecessários. As únicas pesquisas que jamais tiveram entrada em seus filmes foram feitas sempre por outros. A qualidade da dublagem dos filmes de Fassbinder costuma ser deficiente, não porque ele visasse um efeito especial de distanciamento ou uma defasagem entre a trilha sonora e o movimento dos lábios dos atares, mas porque não estava disposto a investir tempo na correção de tal tipo de defeito.

Embora desde sempre ele tivesse tendência para o tédio, esta inclinação foi acentuada pelo consumo de drogas. Ele tentava justificar racionalmente sua dependência. Rimbaud, argumentava, não teria conseguido escrever sem drogas, e também Proust teria necessitado de drogas para pôr no papel A la Recherche du Temps Perdu. Fassbinder ingeria raramente drogas alucinógenas durante as filmagens, mas fumava maconha ou haxixe e bebia bourbon em copos de cerveja. Quanto menos ele se chateasse, tanto menos drogas ele necessitava, mas quanto mais drogas ele ingeria, tanto mais impaciente se tornava.

Fassbinder era um brilhante contador de histórias através do cinema, um mestre da relação entre diálogo e imagem. Mas não estava interessado em deixar os seus atores interpretarem os diálogos. Embora os diálogos que ele escreveu mostrassem um ouvido afinado para discursos lingüísticos, o visual lhe era mais próximo do que o verbal. "Nunca entraria na minha cabeça ensaiar diferentes entonações. Não há coisa que eu odeie mais do que imitações. Não quero mostrar nada mais, numa situação, do que aquilo que o ator nela vê. Prefiro que o ator seja idêntico a si mesmo, fique sendo ele próprio, a deixar que eu lhe imponha uma interpretação".

Fassbinder sabia que o desenfreio é auto-destrutivo, mas ele o praticava com masoquismo puritano. E o desenfreio foi a causa pela qual deu a vida como mártir. Mas esse martírio teve efeitos. Nutre a lenda que se baseia na dialética entre opressão e liberdade que ele havia descoberto. Se ele não tivesse sido um grande opressor, as suas manifestações em prol da liberdade não teriam tido tanto efeito. Observando a sua obra cinematográfica completa, o todo parece maior que a soma das partes. É difícil valorizar cada filme separadamente; e é difícil (mais do que com filmes de Bunuel ou Bergman) ver um destes filmes sem lembrar constantemente quem o dirigiu. Ele trabalhou com tanto sucesso na criação de uma lenda de Fassbinder, que esta lenda nos impinge a perspectiva a partir da qual vemos os seus filmes e, assim, ela representa uma parte considerável de sua obra. As frases que disse a respeito de si mesmo e aquelas que estão contidas em anedotas a seu respeito não podem ser separadas das manifestações contidas em seus filmes. Ele sabia que o seu sucesso dependia em muito da sua própria imagem. E um dos motivos para o seu comportamento excêntrico residia na convicção de que um tal comportamento redundaria em benefício para a recepção dos seus filmes pelo público. Ele precisava da lenda, e a ela se sacrificou.

Ronald Hayman Die Zeit, 18.1.1985
Fonte: site www.ccba.com.br - Centro Cultural Brasil-Alemanha

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