segunda-feira, 21 de maio de 2007

Nem Dom Quixote, nem Sancho Pança

“É tola a visão de que gerentes e líderes são feitos de material genético distinto”

A literatura de negócios tem o mau hábito de estabelecer uma fronteira conceitual entre o líder e o gerente, como se pudessem ser recrutados segundo regras diferentes. De modo geral, diz-se que os líderes são responsáveis pelas idéias e estratégias, e os gerentes pela realização.
Um bom exemplo desse argumento está no livro Metamanagement, do economista Fredy Kofman: “Os líderes precisam focalizar o mundo externo. Os managers precisam focalizar o mundo interno da empresa. São os encarregados de trazer à Terra as idéias revolucionárias dos líderes, organizando a estrutura, alocando os recursos e mantendo o controle operacional.
Para mim, a imagem que melhor traduz essa divisão artificial de papéis entre líderes e gerentes é a dupla Dom Quixote e Sancho Pança. Dom Quixote é o líder, o sonhador humanitário, sempre voltado para o mundo externo e para as grandes causas. Sancho, bem menos romântico é o paradigma do gerente. Ou seja: haveria os sonhadores, que descobrem os caminhos do futuro, e os burocratas, que os viabilizam.
Uma conseqüência inevitável dessa idéia é a competição. Os burocratas acham Dom Quixote um doido. Alienado, sonhador, nada do que ele pensa é exeqüível. Já Dom Quixote vê Sancho Pança como um inferior. Pensa pequeno, está sempre preocupado com o orçamento, tem pernas curtas, come de boca aberta...
Acho que precisamos enterrar essa forma radical de ver as coisas. Líderes podem ter virtudes adicionais, sim, mas não acho razoável que se separem os talentos. Para mim, vale muito a intensidade. Quero dizer o seguinte: líderes e gerentes precisam ter as mesmas características. O que muda é a taxa de concentração dessas características. Líderes são gerentes com um plus, um adicional. E os bons gerentes são aqueles que um dia se tornarão líderes, ou pelo menos podem se tornar.
O mundo empresarial não está dividido entre líderes e gerentes. Ao contrário, ser líder é uma das características fundamentais do bom gerente. Liderança é um estilo gerencial. Qualquer profissional que tenha subordinados, além de organizar e estruturar, alocar recursos e manter o controle operacional, vai se relacionar com eles, liderando-os ou sendo seu chefe. Se for chefe, do tipo dado a ordenar, apenas, terá subordinados que vão obedecer-lhe. Se, em vez disso, lidera-los, terá coordenadores que vão, junto com ele, comprometer-se com o objetivo comum.
As empresas já descobriram que o engajamento da equipe é um dos fatores mais importantes para a produtividade. Como se consegue isso? Há varias receitas, e cada curso de liderança dos muitos que surgiram nos últimos tempos parece ter descoberto uma nova. Eu prefiro recorrer a uma receita antiga de 1784, dada pelo filósofo alemão Immanuel Kant. Nos seus Textos Seletos, Kant propõe que no mundo existem coisas e pessoas, diferenciadas por seu valor. O valor das coisas é o preço. O das pessoas, a dignidade. Que é respeitada na medida em que as pessoas forem tratadas como maiores e autônomas.
Parece óbvio, mas temo que muitas empresas tratem as pessoas de um jeito tão inadequado que elas vêm sendo coisificadas. Isso acontece quando, para avaliar alguém, usa-se exclusivamente o critério de utilidade. O profissional só vale por aquilo que pode realizar. Para as pessoas, trabalhar sob esse sistema métrico é desmotivante. Para as empresas, pode comprometer seu futuro. O motivo é que, coisificadas, as pessoas tendem a manter com a empresa uma mera relação de troca. Elas emprestam suas habilidades por um salário. Para que isso não ocorra, é preciso promover nas empresas o resgate da dignidade. Como?
Primeiro, é preciso admitir que as pessoas têm emoção. E que devem ter o direito de expressar sua emoção no ambiente de trabalho. Não se trata de transformar o escritório num espaço dado a psicodramas, mas estimular a equipe a reagir, a dar sua opinião, a discutir se o grupo deve ou não aderir uma nova prática. Pessoas coisificadas podem realizar muitas coisas. Mas só as pessoas maiores, autônomas e, portanto, independentes vão se comprometer com um projeto.

Paulo Gaudêncio – é médico psiquiatra e consultor de empresas

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